Costurando uma história em outra
Ter uma Entoada Nordestina é importante e precisa ser fortalecida, ter artistas locais fomentados é essencial, transformar a gestão cultural compartilhada em prática diária e transparente é conduzir a formação cultural da cidade para um terreno fértil, produtivo e diverso
![Fotos: Território Livre Fm](https://territoriolivrefm.com.br/wp-content/uploads/2023/03/TL_Fm_Capa-16.png)
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Sabe quando você está vivendo um momento e do nada parece que você se desloca e consegue ver a situação de fora? E você está lá, se vendo viver um momento, e esse instante é tão presente que parece ser eterno?
No último fim de semana tive vários desses insights, trabalhei na Entoada Nordestina, evento promovido pela Prefeitura de Ribeirão Pires em homenagem aos vários migrantes que contribuíram para a construção da nossa região à base de suor e despedidas, encontros e desencontros, preconceito e resistência, um povo que conta facilmente a resiliência de uma cultura, que tem na pele a força dos que superam as adversidades que o ser humano pode criar para outros seres humanos por ganância e arrogância. O povo nordestino que salvou e salva o Brasil.
E nesse contexto todo, vi artistas ribeirãopirenses que caminham numa estrada seca e hostil à procura do reconhecimento que traz alívio, em busca de trabalho que mata a sede de estar em seu território e dele tirar seu sustento, vi subir aos palcos cangaceiros da Pérola da Serra que lutam por direitos culturais e enfrentam capitães da política de balcão que vinham tomando conta das nossas terras serranas. Ali, naquele espaço que já foi um Complexo Cultural, vi Marias Bonitas e Lampiãos que fazem parte do Fórum de Cultura e do Conselho Municipal de Política Cultural de Ribeirão Pires, esses e principalmente essas (a maioria são mulheres) que muitas vezes são hostilizadas pelos partidos de luta que fazem parte, são subestimadas e interrompidas em uma reunião de Gestão Cultural, que infelizmente são alvejadas por tiros amigos em uma discussão entre pares, esses e essas que não saem da linha de frente na batalha a favor dos trabalhadores culturais. As vi em seus lugares de atuação e com merecidos aplausos.
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Em um sertão de pedras e palcos desiguais, embaixo de um sol de mais de 32º, eles e elas estavam em alerta e prontos para entrar em cena e mostrar que os artistas de Ribeirão Pires e região tem bala n’agulha para sustentar uma programação artística de três dias de festa. E poderia ser mais dias, mais artistas, mais apresentações e mais valorização dessas gentes porretas que fazem da dificuldade piada amplificada no microfone, sem medo de tocar seus tambores e invadir o evento para se mostrar presente.
“Banditismo por uma questão de classe”, já dizia Nação Zumbi e que o grupo Balaio de Canelau fez ecoar na Estância Turística tirando o público e os outros artistas pra dançar e expurgar a energia represada de anos de uma classe artística sufocada e precarizada pelo poder público. Atores, atrizes, coletivos, bandas, artesãos, livreiros e agentes culturais postos em bando para proteger nosso território cultural, aqui tem artista de chumbo grosso e sem medo de represália, sabendo dos seus direitos e lutando pelos espaços que são deles por conquista.
Fazer parte de um evento que, finalmente, abriu chamada pública para contratação de mais de 50 artistas locais me faz sentir, finalmente, orgulhosa de carregar o crachá de servidora pública. Mais ainda, ver minhas companheiras e companheiros artistas tomando consciência de que é possível trabalhar com arte e que isso não deve ser privilégio para poucos e, sim, direito para todos, é grandioso demais na labuta de uma agitadora cultural, meu cargo favorito.
Não foi perfeito, muitos tiros no pé, mandacarus no caminho e alguns açudes secos. Ainda é preciso melhorar e muito, ainda vimos apresentações que poderiam ser mais iluminadas, literalmente, uma formação de público mais adequada, espaços com mais equidade em suas estruturas e outras pedras no caminho que foram lindamente superadas pela garra de artistas e equipe de trabalho. Não foi perfeito e, por isso, esperamos mais eventos como esse para que os espinhos sejam podados e que as flores tenham lugar para florescer ainda mais livres, que sejam regadas as raízes dos editais e que esse agreste, que divide a seca de trabalho e a umidade do salário, seja cultivado para que as plantações deem seus frutos sem restrições de linguagem. Trabalhadores da Cultura já sabem enfrentar os tempos de Caatinga, mas agora querem ver chuva de oportunidade de trabalho e reconhecimento cultural.
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Hoje, 27 de março – Dia Mundial do Teatro e Dia Nacional do Circo – evocar a importância dessas artes na história e na cultura da humanidade é primordial para a continuidade das ações e geração de emprego nas duas áreas cênicas, o Teatro e o Circo. A segunda linguagem, o Circo, que ainda não tem uma política pública direcionada para seus artistas aqui em Ribeirão Pires, precisa ainda ter mais visibilidade como potência econômica e ter abrigo nos eventos da cidade. O Circo pede passagem para se instalar sem enfrentar burocracias limitadoras e seus trabalhadores precisam sair dos faróis invisíveis.
No circo, o artista arma seu próprio palco, pinta sua máscara e com o salgado gosto do suor chama seu respeitável público para entrar, sentar e assistir suas acrobacias físicas e conceituais. O trabalhador do circo não é palhaço, o palhaço que é um trabalhador e precisa de salário e comida no prato, merece respeito e tem o direito de ter seu trabalho digno no picadeiro do próprio circo e da sociedade. Um elo entre o circo e o povo nordestino são suas forças familiares, andam juntos em busca de oportunidades e trazem na bagagem a cultura de um povo que faz da terra árida, palco para grandes ideias e invenções artísticas – eita povo criativo!
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Numa roda de Cultura Popular me vi ali, dançando de crachá no pescoço segurando a mão de um aluno meu e na minha frente o sorriso de uma professora minha que dança o passo da ciranda que me ensinou e que eu ensinei depois, que agora juntos estamos numa roda fazendo girar a produção cultural de uma cidade. Tudo ao som de uma banda que canta a história das muitas gerações de aprendizes de teatro que esperam ver o Teatro Municipal Euclides Menato sendo devolvido à população, reformado e pronto para abrigar as obras cênicas dos nossos contadores de história e dos pés dançantes dos bailarinos. Que aquele espaço volte a ser a casa de artistas que fazem a trilha sonora de uma cidade que pulsa Arte e Cultura.
Ato Teatro
Nessa entoada Ribeirãopirense tinha um pseudo-palco para o teatro, com apresentações diversas que contaram a história do forró, do sertão, as lendas e contos das terras lá de cima do mapa e que se espalharam pelo Brasil compartilhando diversidade e exigindo respeito pela sua cultura nordestina, que ainda é subestimada e sofre preconceito como o linguístico e cultural. Vou fazer um aparte, segundo a Profª. Dra. Ana Cláudia Mota, que fala lindamente em um artigo da Universidade Tiradentes sobre os preconceitos que a Cultura Nordestina sofre nos palcos das cidades elitizadas, “Quando o oxente do baiano, o vote do sergipano, o desdobro do cearense, o visse do pernambucano, o mangar do alagoano, o vou banhar do maranhense, o ingembrado do piauiense e o broto do potiguar forem vistos como riqueza cultural, o preconceito linguístico não terá mais vez”, e eu tomo a liberdade de completar e dizer, enquanto a cultura não for reconhecida como riqueza os preconceitos serão multiplicados.
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Ter uma Entoada Nordestina é importante e precisa ser fortalecida, ter os artistas locais fomentados é essencial, transformar a gestão cultural compartilhada em prática diária e transparente é conduzir a formação cultural da cidade para um terreno fértil, produtivo e diverso.
Tem tudo a ver com Teatro, tem tudo a ver com Circo, tem mais ainda a ver com a cultura do povo nordestino, essa resenha fala sobre tradições, lutas e resistências que precisam ser reconhecidas e valorizadas nos trilhos do ABCDMRR e nas letras das leis de incentivo cultural. Tem tudo a ver com o nosso povo trabalhador do setor cultural.
Tem tudo a ver com um grande “Viva ao teatro, ao circo e ao povo nordestino!”
Que texto maravilhoso!👏👏👏