Déli e o Microfone
Vamos brincar de personagem, brincar de dar um terceiro olhar pra cena, um olhar com uma lente de aumento para os achados cotidianos, ou talvez, nem tão cotidianos assim

Tudo o que digito agora e que você no seu agora está lendo, não passa de palavras de alguém confinada e escrevendo no notas do celular o que encontra na vida das pequenas coisas desimportantes. Daqui pra frente, tudo o que você encontrar é um apanhado das palavras que você fez saltar do papel, ou atualizando a linguagem, fez saltar da tela. Vamos brincar de personagem, brincar de dar um terceiro olhar pra cena, um olhar com uma lente de aumento para os achados cotidianos, ou talvez, nem tão cotidianos assim.
Déli tomou coragem para arrumar o seu guarda-roupa com todas aquelas peças que há tanto não usa, mas a tanto está de ponta cabeça (evito usar a palavra tempo, afinal, já não sabemos mais contar o quanto passou). Ela estava pronta com álcool e um pano na mão, tirando peça por peça dos cabides, dobrando, empilhando e separando em poucas categorias em cima da cama. Terminada as portas menores e maiores do armário, secou o suor da testa e abriu a gaveta emperrada que há tanto não abria por pura preguiça de enfrentar as tralhas acumuladas juntas da poeira. Um barulhão de desemperramento tomou o quarto, e Déli se viu fatalmente atravessada por um encontro. Ela estava cara a cara com um microfone.
O tal achado estava ali, intacto, o próprio símbolo do ecoar das palavras de encontro com uma garota de mãos atadas. Ela que há tanto já se adaptava aos dias de encontros pelos pequenos retângulos que carregam tudo junto: câmera, aplicativo de mensagens, redes sociais e com o encaixe para fone de ouvido com microfone imbutido… Ela já não se dava mais o trabalho ou a nostalgia de lembrar do microfone com botão prático para ligar e desligar o som das palavras e das interferências desajustadas. Um microfone que passava de mão em mão acrescentando pontos de vista diferentes na mesma roda, feita na mesa quadrada dos dias. Um microfone que precisa de um tripé para manter a liberdade das gesticulações das extremidades do corpo que fala, além das palavras.
Encontrar um microfone é encarar as memórias e ter a certeza que ideias não podem morar nas gavetas, elas são resistentes e reinventáveis, elas precisam ecoar livremente feito mic aberto.
Déli, após esse encontro com o acaso, deu início a mais uma live, o novo formato da esperança da vida real.
– Estamos ao vivo, liberem seus microfones!