Eu sou trabalhadora da Cultura
Trabalhadores da Cultura, uni-vos! Como garantir acesso e participação nas leis de fomento
Todo artista já teve que responder o seguinte teste de paciência:
– Você faz o que da vida?
– Eu sou artista.
– Tá… Mas você trabalha com o que?
– Com arte.
– E como você sobrevive? Paga as contas?
…
O trabalhador do setor cultural tem realmente dificuldade para responder a última pergunta, afinal, como artista paga suas contas?
O artista irônico responderia, “eu não pago. Me alimento do amor pela arte, bebo paixão pelo ofício e visto aplausos no final do dia”; o artista politicamente correto tentaria explicar que tem dificuldades para ter uma estabilidade financeira, mas que com muito suor, pouco sono e muita luta consegue seu sustento com trabalhos em outros setores ou, ainda, que se esforça para conseguir entrar em um edital aqui e outro ali, que a bilheteria paga a conta de água, o chapéu compra o pão de cada dia e que ainda faz uns bicos durante a semana para conseguir um extra. E assim segue a vida do trabalhador cultural.
O setor cultural é responsável por 4,52% do PIB do país ou R$ 334,2 bilhões, segundo a ABRAPE (Associação Brasileira dos Promotores de Eventos). Os dados apontam, também, o emprego de 444 mil pessoas em postos de trabalho ligados diretamente ou indiretamente ao setor cultural e ainda informam que o setor gera R$ 51,4 bilhões de impostos federais. São muitos números, revertidos em valores, pessoas envolvidas e que de uma forma ou de outra sobrevivem da Economia Criativa.
Mesmo assim, os TRA-BA-LHA-DO-RES precisam ouvir que vivem da “mamata” das leis de incentivo e fomento ou, pior, que não são economicamente produtivos e, por isso, ter um Ministério dedicado ao setor é um gasto público, afinal de contas, a Cultura pode ser um apêndice de um outro setor qualquer. Ou seja, o setor cultural é visto como não essencial ao organismo e subestimado como um agregado que pode gerar grandes dores quando inflamado, além de causar problemas quando provocado. Loucura fomentar esses “caras”. E é com esse pensamento que a Federação, Estados e Municípios deixam de investir em arte. Vale lembrar que o Ministério da Cultura já foi extinto no Brasil (nos desgovernos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro) prejudicando toda a cadeia de postos de trabalho e políticas públicas para o setor cultural.
Ufa! Ainda bem que agora temos a dona Margareth Menezes, Ministra da Cultura no Governo Lula. Já em seu primeiro discurso à frente da pasta, ela disse: “Nós merecemos o nosso ministério. O Brasil tem uma das mais ricas, potentes e respeitadas forças de produção cultural do mundo. Que o nosso MinC nunca mais desapareça”.
Mas, de verdade agora, como são pensadas as políticas públicas, mercado de trabalho e geração de renda no setor cultural? Quais são os mecanismos de fomento à Cultura?
Temos, atualmente, dois tipos de fomento à Cultura. Há fomentos indiretos que são as leis de incentivo fiscal, como as leis federais Rouanet e a Lei do Audiovisual e aqui em São Paulo o PROAC ICMS, em todas essas o produtor cultural recebe a chancela para captar os recursos do imposto de renda que seria recolhido pela União. A União, por sua vez, torna as empresas isentas do imposto desde que invistam esse valor (até 100% do IR) nos produtos culturais. Já o segundo, o fomento direto, são as chamadas públicas, prêmios, editais e outros investimentos que os entes federativos depositam nas produções culturais através dos Fundos de Cultura e/ou orçamento da pasta.
Durante a pandemia, segundo a Somos Ibero-América, aproximadamente 2,6 milhões de postos de trabalho foram afetados pelas medidas de isolamento social e restrições de atendimento, prejudicando o setor das indústrias culturais e criativas na América Latina. Aqui no Brasil, foram mais de 600 mil trabalhadores que perderam seus empregos, segundo o IBGE. Muitas casas de espetáculo foram fechadas, shows e eventos cancelados, a renda dos profissionais da Cultura foi completamente afetada e os artistas tiveram que se virar – ainda mais – para sobreviverem, vendendo seus instrumentos de trabalho, mudando de setor e/ou se adaptando com a realidade virtual. Muitos não resistiram e acabaram desistindo do setor. O mercado cultural não trata apenas dos artistas que aparecem em cima do palco, mas também é responsável pela equipe técnica, funcionários dos teatros, cinemas, produtoras e outros postos de trabalho indiretos.
Com esse cenário devastado, entra em cena a lei de subsídio que dispõe sobre ações emergenciais para o setor cultural. A primeira lei que versa sobre essa situação é a Lei Federal 14.017/2020 chamada de Lei Aldir Blanc, ela distribuiu cerca de R$ 3 bilhões em 2020 para manutenção de espaços culturais, projetos e prêmios, alcançando cerca de 700 mil trabalhadores de acordo com a Agência Senado. Essa lei propõe a transferência dos recursos do Fundo Nacional da Cultura (FNC) para os fundos estaduais e municipais para fomento direto aos trabalhadores da Cultura.
E aí se liguem nos dados que o Portal Gov.br nos apresenta depois de um estudo dos impactos da LAB: a pesquisa aponta que a Lei Aldir Blanc alcançou mais de 4 mil municípios que nunca receberam recursos diretos para a Cultura e que 75% das prefeituras do país não haviam recebido, nos últimos 12 anos, dinheiro do Governo Federal para apoio ao setor cultural.
A Aldir Blanc não só permitiu a manutenção de muitos espaços e produções artísticas como, também, fortaleceu as ferramentas do Sistema Nacional e Municipal de Cultura, provocando os gestores das cidades a se movimentarem para implantação do mapeamento artístico local, instituírem os Conselhos de Política Cultural, abrirem diálogo com a sociedade civil, fazerem busca ativa dos fazedores de Cultura e trabalharem com editais e chamadas públicas. O movimento contribuiu bastante com a formação de gestores de Cultura e dos artistas, que em muitas cidades nunca tinham conseguido participar de um fomento à Cultura em sua terra natal. Ribeirão Pires pode ser um exemplo, já que até então não havia conseguido elaborar editais para selecionar artistas da cidade por falta de verba e pela velha política de balcão.
Agora, em 2023, despois dos vetos do inimigo da Cultura Jair Bolsonaro, outro aporte chegará nos Estados e Municípios através da Lei Aldir Blanc, deixando de ser uma política de emergência e se impondo como Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, que vai garantir o repasse anual de R$ 3 bilhões da União à Estados e Municípios para incentivarem o setor cultural por 5 anos.
Outra lei que chega como ação emergencial, mas tem características que podem torná-la uma política permanente é a Lei Complementar Nº 195, de 8 de julho de 2022, chamada Lei Paulo Gustavo – com recursos do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual. A LPG vai injetar no setor cultural R$ 3.862 bilhões para aplicação em ações emergenciais que visam combater e mitigar os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre o setor cultural.
Juntas, as duas leis, vão construir uma prática de fomento à Cultura que não existia antes, os valores sendo repassados de fundo a fundo e com indicações explícitas; para receber e distribuir os recursos os Estados e Municípios precisam fortalecer os sistemas estaduais e municipais de Cultura existentes; se forem inexistentes o ente federado deve implantá-los, com a instituição dos conselhos, dos planos e dos fundos estaduais e municipais de Cultura.
Então, ou vai ou racha! Os gestores precisam estar atentos aos prazos e as práticas que as duas leis exigem e colocar as secretarias e departamentos para estudar, executar e garantir que a lei seja implantada de forma transparente e com a indispensável participação da sociedade civil. Aos conselhos, fóruns e classe artística organizada cabe a fiscalização das ações para evitar favorecimentos ilícitos ou a perda da verba por falta de capacidade de execução das cidades.
Depois desse panorama da conjuntura cultural, precisamos olhar para o nosso território e avaliar em que pé anda as movimentações dos departamentos de Cultura, já que a regulamentação da LPG está prevista para março e depois de publicada os Estados e Municípios terão apenas 60 dias para apresentar o Plano de Ação na Plataforma Mais Brasil solicitando e descrevendo onde e como os recursos serão distribuídos. Para os desavisados fica o aviso, o Plano de Ação deve ser construído – e aí vou citar o texto da lei para não deixar dúvidas de como deve ser a condução tanto da gestão quanto dos trabalhadores da Cultura, segundo o Art. 4 §2 temos a seguinte diretriz:
“…os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão promover a discussão e a consulta junto à comunidade cultural e aos demais atores da sociedade civil sobre parâmetros de regulamentos, editais, chamamentos públicos, prêmios ou quaisquer outras formas de seleção pública relativa aos recursos da lei, seja por meio de conselhos de cultura, de fóruns direcionados às diferentes linguagens artísticas, de audiências públicas ou reuniões técnicas com potenciais interessados em participar do chamamento público, sessões públicas presenciais e consultas públicas, desde que adotadas medidas de transparência e impessoalidade”.
Entendeu? Toda decisão arbitrária das secretarias e departamentos de Cultura seria ilegal. Então, trabalhadores da Cultura uni-vos e vamos garantir os nossos direitos de participação nas decisões da gestão cultural da nossa localidade.
Para o próximo capítulo dessa saga, vamos tratar especificamente do planejamento e execução da LPG e como a participação da sociedade civil pode acontecer. A ministra Margareth Menezes disse uma parada linda sobre o nosso setor de trabalho e vamos terminar assim para poder recomeçar desse ponto:
“Todos ganham com o desenvolvimento cultural, como sabem, Educação sem Cultura é ensino, Segurança sem Cultura é repressão, Saúde sem Cultura é remediação, Desenvolvimento Social sem Cultura é assistencialismo”
Tem alguma dúvida, lança pra nóis que a gente vai atrás para você ficar na frente dessa corrida. Até!